21.2.18

“Não podemos depender da chuva para produzir alimentos”

in Expresso

O engenheiro agrónomo que pôs em marcha o programa Fome Zero no Brasil — que em 2003 tirou da fome milhões de brasileiros — esteve em Lisboa para participar numa reunião da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) sobre agricultura familiar: “Em África, deveríamos estar a criar dez milhões de empregos por ano; como só são gerados três a quatro milhões”, o défice é enorme, e isso leva muitos jovens a arriscar a vida na “travessia do Sara e do Mediterrâneo. Por isso é que tentamos convencer os doadores a investir em África em vez de andarem a criar muros” na Europa.

As Nações Unidas defendem o Direito Humano à Alimentação Adequada, mas ainda existe fome em muitos locais do mundo. Porquê?
A fome passa pela guerra, pelos conflitos, e também pela falta de dinheiro que resulta do desemprego. Há produtos disponíveis ao contrário do que acontecia nos anos 60 em que países como a Índia, o Bangladesh, e outros tiveram grandes crescimentos populacionais e falta de alimentos para tantas pessoas. Só que agora muitos não têm dinheiro para os comprar.

Isso significa que os chamados países ricos deviam ajudar, investindo nesses países e ajudando a inverter o ciclo?
Em países como o Mali, o Chade, a Eritreia e outros há conflitos mas também há falta de emprego para os jovens. Nos países africanos temos um défice de seis milhões de empregos por ano; se formos à causa última, faltam políticas de desenvolvimento rural. O caminho passa por uma aposta na agricultura familiar que produz 80% dos alimentos consumidos no mundo e cria postos de trabalho.

A resposta alimentar aos refugiados de guerra está a ser suficiente?
O que conseguimos fazer em situações de emergência é dar a alimentação básica. Mas não conseguimos fazer mais do que isso por falta de recursos; as crianças e mulheres são as grandes vítimas destes processos...

Comida em quantidade significa alimentação apropriada?
Não, não significa. Basta lembrar que Portugal tem um problema de obesidade; já teve fome, agora não tem, mas a obesidade é sinal de má alimentação.

A CPLP está preocupada com o papel da indústria alimentar no combate à obesidade e ao desperdício alimentar?
A CPLP é a segunda comunidade de países a ter uma política agrícola comum, e quero lembrar que a primeira foi a União Europeia. Ao ter uma política agrícola comum considera a alimentação uma prioridade e a prova é que um país como Angola fez grandes progressos em termos de autonomia alimentar, embora tenha o problema de ter minas nos terrenos, que dificultam a agricultura em certas áreas. Mas há que estar atento ao desperdício alimentar; o que se desperdiça quase que daria para alimentar a população mundial que tem falta de alimentos.

Como é que se combate o desperdício?
Com educação alimentar. A indústria tem de ter um papel ativo; hoje fabricam-se porções muito grandes de alimentos, incluindo as bebidas, que quase ninguém consome por inteiro. Vai fora e é um desperdício.

A agricultura biológica é mesmo mais saudável?
Esperamos que sim. Eu próprio sinto diferença quando consumo produtos biológicos, porque tenho algumas alergias.

Pode vir a ser mais barata?
O preço ainda é alto porque se produz pouca quantidade. Se se produzir mais e os canais de distribuição mudarem, o preço cai. Em Itália, existe o programa Km 0, que incentiva restaurantes a utilizarem produtos locais isentos de impostos.

O clima está a mudar e isso vai afetar a produção de muitos alimentos. Como se faz agricultura com menos água?
Não podemos continuar a depender da chuva para produzir alimentos. Tem de se usar o sistema gota a gota que consome mil vezes menos água do que a rega por inundação.

Portugal é um exemplo em termos agrícolas?
Melhorou muito. Soube acrescentar valor aos produtos que produz tornando-os competitivos.

O homem da luta contra a fome é neto de um português
Nasceu nos EUA, filho de brasileiros, e a biografia oficial também lhe estabelece uma ligação a Itália. Mas José Graziano da Silva, “um brasileiro na elite da ONU”, como o retratou a revista “IstoÉ”, diz com orgulho que o seu tio-avô, António Gomes do Céu, foi “guarda dos Pinhais Reais de Leiria”. Tem 68 anos, é neto paterno de Maria Gomes do Céu e José Gomes da Silva, dois portugueses da zona de Leiria que emigraram para o Brasil. Quando era estudante trabalhou como fotógrafo no estado de São Paulo.