7.8.17

Europa, fragilidades num Mundo novo

Pedro Jordão, in Público on-line

Não, o nosso problema não é a crise atual. É uma perda estrutural de competitividade e uma miopia estratégica.

No ano 2000, a União Europeia (UE) produziu uma aparatosa declaração que definia a Agenda de Lisboa, uma ambiciosa visão estratégica do seu futuro. O documento era interessante. Mas refletia ideias que, embora importantes e apelativas, eram lugares-comuns. A real criatividade da declaração foi reduzida. Contudo, o habitual exagero declarativo e o estilo pomposo das declarações europeias acabariam por acentuar a irrelevância deste estilo majestoso. A realidade é mais complexa.

Com essa declaração de Lisboa a UE “decidia” que, até 2010, esta região seria “a mais dinâmica e competitiva” economia do mundo, baseada na sociedade do conhecimento, com uma capacidade sustentável de crescimento económico e de melhor emprego. Esses objetivos eram importantes, mas óbvios. Todos os países pretendem os mesmos objetivos, esses. Um dos fatores de miopia europeia consiste em acreditar-se que os políticos europeus compreenderam os segredos do universo e são iluminados, enquanto o resto do mundo é semi-imbecil. Estas declarações acabam por, em algum grau, prejudicar a credibilidade da UE no mundo.

Já passou o simbólico ano 2010. Olhemos sucintamente os anos decorridos. O desemprego aumentou dramaticamente, mesmo muito antes da atual crise “global”. A Europa perdeu competitividade e, consequentemente, exportou empregos para outras regiões do mundo, desde as mais ricas como os Estados Unidos às menos desenvolvidas como a Ásia. Provavelmente mais de 80% do desemprego europeu é estrutural e nem com uma forte retoma económica desapareceria com as atuais estratégias. Em 2003, a China ultrapassou a UE como exportador de tecnologias de informação. Empresas na África central processam funções administrativas para empresas alemãs, onde correspondentes postos de trabalho foram extintos. A Índia ganhou o controlo de dois terços de todo o sofisticado mercado mundial de serviços de software. O poder financeiro europeu subalternizou-se perante o ascendente poder dos bancos asiáticos. A China, até um passado recente um país pobre, tornou-se na segunda maior economia do mundo em termos nominais e a maior em paridade de poder de compra, enquanto tem avassaladoramente adquirido empresas no continente europeu em penúria financeira.

A recente crise global nasceu nos Estados Unidos. Como quase tudo o que acontece nesse país, esta crise influenciou todo o mundo. A Europa imediatamente soçobrou. Mas os norte-americanos saíram da crise mais rapidamente que a Europa. Desde a declaração europeia de Lisboa em 2000, a China consolidou-se como líder mundial em numerosos domínios tecnológicos e da sociedade do conhecimento, inclusive em sectores como o das energias renováveis. O PIB per capita dos norte-americanos é muito superior ao dos europeus.

Mesmo antes da recente crise, o desempenho económico europeu demonstrava uma perda de velocidade num mundo em que outros estonteantemente a ganham. No último ano antes da crise, em 2007, a economia da Zona Euro crescia 2,3%, enquanto a dos países em desenvolvimento crescia 8,3%. Não, o nosso problema não é a crise atual. É uma perda estrutural de competitividade e uma miopia estratégica.

O mundo mudou e vai mudar muitíssimo mais. As declarações pomposas de políticos europeus revelam o respetivo desconhecimento, mesmo que sublinhe a sua boa vontade. Mas esta postura faraónica acaba por levar a que o mundo leve menos a sério o que os europeus proclamam.

A Europa continua a constituir um dos grandes pilares da economia mundial. E sê-lo-á por muito tempo. Mas está a perder proeminência, influência e capacidade determinante nas grandes questões da política, da economia e da segurança internacionais. Os Estados Unidos, apesar dos fluxos e refluxos de poder, continuam a ser cruciais, e a emergência da Ásia e de outras regiões está a secundarizar a Europa.

A população europeia regride e envelhece, colocando em risco de colapso o modelo civilizacional e o modelo social sedimentados nos séculos anteriores. Contrariamente, a população dos Estados Unidos cresce e a do mundo em desenvolvimento cresce ainda mais, numa matriz de demografia explosiva e jovem que vai apagando o peso europeu, que há apenas um século era ainda quem geria o mundo.

A Europa é uma referência de valores civilizacionais e sociais, de boa educação e de cultura. E é um bom mercado de consumo. Mas a produção de bens e serviços desvia-se para outras regiões. Com a migração centrífuga do poder económico, afastam-se igualmente os poderes financeiro, político e militar. E, enquanto o mercado europeu é maduro, outros gigantescos mercados de consumo estarão a formar-se noutras regiões. A classe média da Índia é já superior à de todos os países da Zona Euro, juntos.

Em matérias de grande política mundial a UE é ouvida mais por cortesia que por interesse. São os Estados Unidos que pesam para procurar soluções para o Médio Oriente, o Paquistão ou o Afeganistão. Em situações de risco os europeus têm medo. Durante o genocídio da Bósnia (no seio da própria Europa), durante mais de três anos os europeus não tiveram coragem para intervir e parar massacres horríveis de populações inocentes. Foram os norte-americanos que atravessaram o Atlântico para o fazer. Os exércitos europeus eram esmagadoramente mais poderosos que as forças sérvias. Não faltava poder. Faltava coragem, fibra. E faltou respeito por seres humanos que estavam a ser massacrados.

A história da Europa confronta-se com encruzilhadas que são absolutamente determinantes para o seu futuro no mundo. Podemos refugiar-nos em posturas de negação das nossas gritantes fraquezas, ou podemos reinventar a nossa influência e a nossa competitividade. Mas, para que isso se materialize, o pior que pode suceder é acreditarmos na teologia dos grandes textos, das altivas declarações surreais ou dos fundamentalismos acríticos da “classe” política europeia.

Recusar reconhecer os grandes erros europeus leva a que eles se perpetuem. Entretanto, enquanto os europeus adoram acreditar em ficções que a realidade desmente, o mundo real está a mudar. Muito e muito depressa. E a desviar-se da Europa.