7.2.17

"Isto é a regra da morte global"

Fernanda Câncio, in Diário de Notícias

Katja Iversen preside à ONG Women Deliver, que defende os direitos das mulheres, desde 2014. Antes trabalhou na UNICEF e no Fundo da ONU para a População.

A Mexico City Policy, ou Global Gag Rule, não é novidade. Há experiência prévia dos efeitos desta política com Reagan e os Bush. Que pode dizer sobre esses efeitos?

Não chamo a esta política a Global Gag Rule (Regra da Mordaça Global) mas a Global Death Rule (regra da morte global). Porque veremos muito mais mulheres morrer. As organizações que trabalham com as mulheres dos países em desenvolvimento vão perder financiamento, portanto não poderão providenciar uma série de serviços de saúde, serviços que não têm só a ver com aborto, mas com todo o tipo de cuidados de saúde, contraceção, etc. Veremos um aumento de gravidez indesejada, veremos um aumento da morte materna e veremos um aumento no número de abortos. O que é muito irónico.

Do ponto de vista de quem defende esta medida, porém, basta que as organizações não façam abortos ou não os recomendem ou mencionem para não perderem o financiamento. Como responde a isso?

A América é a terra da liberdade expressão. Mas as ONG internacionais (esta medida não se aplica às americanas) que recebem o dinheiro americano e de outras fontes não podem usar este último como entendam. Imagine que administra a única clínica da zona e recebe dinheiro de várias origens. Por causa desta regra, se não quiser perder o financiamento americano, não pode sequer dizer à mulher que tem o direito de escolher se quer ou não levar uma gravidez a termo.

Isso aplica-se, naturalmente, em países onde as mulheres podem escolher abortar, dentro da lei - como de resto sucede na América desde 1973. Portanto uma clínica não poderá informar as pacientes sobre o que a lei do respetivo país permite?
É isso. É um direito das mulheres decidir quantos filhos querem ter, quando querem tê-los. É um direito de todas as mulheres no mundo. Esta medida afeta o direito de uma mulher de tomar essas decisões com toda a informação disponível.

Têm surgido interpretações no sentido de que o decreto de Trump tem uma incidência mais vasta que os anteriores, que só abrangiam a ajuda para a saúde reprodutiva. Poderá afetar o total da ajuda americana para a saúde, que tem sido referida como ascendendo a nove mil milhões de dólares.

Sim, lendo a ordem executiva fica-se com a ideia de que desta vez a medida se aplica de modo muito mais vasto, o que implica que terá consequências ainda mais graves. Vai depender muito da forma como for operacionalizada. Mas temos receio de que possa vir a afetar toda a ajuda financeira na área da saúde e não só os 575 milhões da ajuda para a área da saúde reprodutiva: desde a saúde materna e infantil ao combate à malária, ao HIV... As consequências podem ser muito mais gravosas e podem morrer muito mais mulheres.
E homens.

Claro, se todo o programa de combate ao VIH-sida for afetado, vai ser um desastre.

O site de extrema direita Breitbart (fundado e até há pouco tempo dirigido pelo principal conselheiro deTrump, Steve Bannon), refere o Fundo da ONU para a População como uma das organizações que deve perder financiamento. A ONU está na mira de Trump?
O Fundo recebe cerca de 70 milhões de dólares por ano. Bush retirou-lhe financiamento em 2001 e parece-nos que esta administração quer fazer o mesmo, e de um modo geral diminuir o financiamento à ONU. Será um grande golpe na ONU e nos milhões e milhões de pessoas que a ONU ajuda, e custará vidas.