10.2.17

A pobreza das crianças?

Por Carlos Alberto Correia, in Rostos on-line

Tenham vergonha! A pobreza não é só das crianças. É de todos nós, por mais dinheiro que tenhamos, enquanto não houver trabalho, inclusão e rendimento justo para todos. E nada disto é impossível!

Diversas instituições, comentadores nacionais e internacionais vêm debatendo o tema anunciado em título. À primeira vista parece ser conceito perfeitamente aceitável, justo. Quem não é tocado pela imagem de uma criança esfomeada, suja, maltrapilha? É preciso ter coração de pedra para assistir ao sofrimento de tão desprotegidos seres. Já Augusto Gil, na Balada da Neve, se comovia e perguntava: “Mas as crianças, Senhor,/ porque lhes dais tanta dor?!…Porque padecem assim?!…”

E, no entanto, sempre que oiço alguém referir-se ao tema, continuando com Augusto Gil,” uma funda turbação/ entra em mim, fica em mim presa.”, porque entre os traços miniaturais dos pezinhos das crianças diviso, lateralmente, passo a passo, rastos mais marcados, mais profundos que, suponho, possam ser feitos pelos pés dos pais das ditas crianças.

Não querendo ser completamento disruptivo sobre o assunto, parece-me estar perante uma sinédoque, um artifício semântico, de tomar a parte pelo todo, ou, por outras mais claras palavras, mandar areia para os olhos de toda a gente. Na verdade, poderá ser problema meu, não consigo distinguir a pobreza das crianças da pobreza dos genitores, da genérica pobreza das ditas classe baixas. Já agora, aproveito para dizer também não entender como, em qualquer país e sobretudo no nosso, pode alguém, com trabalho garantido, continuar com rendimentos que não lhe permitem ultrapassar a linha da miséria. Presumo haver aqui alguma contradição nos termos ou, como se dizia nos meus tempos juvenis, a lógica é uma batata. Mas adiante.

Penso não ser completamente abstruso se afirmar que só há crianças pobres porque os seus pais, quando os têm, o são igualmente. Aqui o problema muda de estatuto e, em vez da misericórdia anunciada, transparece a tentativa de ocultação de inaceitável proposta de manutenção da desigualdade social, a qual, creio, e perdoem-me as almas bem-intencionadas, é o fulcro da questão. Dê-se a sopinha, uns sapatitos, qualquer abafo às crianças e poderemos fazer olhos mortos ao verdadeiro problema. Com a esmola, sabendo não se resolver qualquer problema social, ficam as boas almas de bem consigo e paraíso garantido.

Deixemos pois de edulcorar a realidade. A pobreza é endémica nas sociedades defensoras das desigualdades, mesmo quando recobrem a podridão com o manto da sentimentalidade, das boas obras. A pobreza das crianças só cessará quando os pais tiverem condições de vida dignas. Tudo o mais é conversa para distrair ceguinhos. Tratemos as coisas pelos seus nomes e reafirmemos não haver, na atualidade, qualquer razão para existir pobreza no mundo, a não ser a que provém da ganância, da distribuição injusta do trabalho de cada um de nós. É sabido, um pequeno grupo detém parte substancial de toda a riqueza do mundo. Como lhes chegou? Como a mantém? Porque lhes calhou a eles? Falem sobre isso, meditem, mudem as fórmulas e nunca mais será necessários choramingar sobre a pobreza das crianças.

Termino com a citação de uma quadra, publicada no Diário de Lisboa, salvo erro no suplemento “A Mosca”, da autoria do meu saudoso amigo, companheiro de trabalho e lutas, Severiano Falcão que foi, durante muito tempo, Presidente da Câmara de Loures:

“Nestas festas de Natal
mais em foco nos jornais
dão-se aos filhos, afinal
prendadas roubadas aos pais”

Tenham vergonha! A pobreza não é só das crianças. É de todos nós, por mais dinheiro que tenhamos, enquanto não houver trabalho, inclusão e rendimento justo para todos. E nada disto é impossível!